Entenda como, em meio à concorrência do varejo on-line e das megastores, os pequenos negócios de livros se sustentam na capital mineira
“O que é uma cidade sem uma livraria?”, questionava Neil Gaiman, criador da história de Sandman, série que figurou no topo do ranking das mais assistidas da Netflix no Brasil na época de seu lançamento. Mais de três décadas antes de fazer sucesso no streaming, no entanto, Sandman vinha ao mundo como um livro. É neste cenário de convergência de mídias, leitores digitais e um universo de telas que os livros impressos sobrevivem, ainda fortes, e emprestam a sua resiliência às livrarias de rua.
“Pode até se chamar de cidade, mas, se não tiver uma livraria, sabe que não engana a nenhuma alma”, responde Gaiman em sua própria citação. No Brasil, existem 2.972 livrarias. Em Minas, são 353, número bem aquém do ideal de Gaiman sobre livrarias e cidades, mas ainda em segundo lugar no ranking de estados com mais livrarias do País. O primeiro posto é de São Paulo, com 1.167 lojas.
O levantamento é da Associação Nacional de Livrarias (ANL), e diz respeito ao ano de 2023. O presidente da ANL, Alexandre Martins Fontes, avalia o cenário como positivo. “Eu acho que não só no Brasil mas em todo o mundo, as pessoas reconhecem a importância das livrarias físicas, e a consequência disso é o surgimento de novas livrarias independentes”, analisa. Nesta terça-feira (23), é celebrado o Dia Mundial do Livro.
E o que as livrarias físicas oferecem que o varejo on-line não comporta, afinal? “Em primeiro lugar, a livraria física é a verdadeira vitrine da indústria editorial, é onde descobrimos o que está sendo publicado e lançado, o que está vendendo mais. É ali que encontramos outros leitores e os autores dos livros em eventos, em lançamentos. Uma livraria é inquestionavelmente um ponto de encontro”, responde Fontes.
Sobre o comércio digital de livros, o empresário José Henrique Guimarães, que coleciona vasta experiência neste mercado (ele é ex-CEO do Grupo Acaiaca, foi presidente da Câmara Mineira do Livro, fundou o Salão do Livro de Minas Gerais e, atualmente, comanda a livraria Outlet de Livro em Belo Horizonte), observa que a concorrência é desleal. E isso não só no digital, mas também em relação às megastores. Por isso, acredita, as livrarias de rua têm que ter um diferencial.
“Tem títulos que são vendidos aqui na livraria e que na internet não se vende tanto, nem mesmo nas grandes redes de livrarias. Porque isso aqui fica escondido nessas lojas, já que a maioria quer vender o ticket mais alto. Então, acho que as livrarias de rua precisam entender que há outras formas de segmentar o negócio para poder dar certo”, comenta.
Diferenciais que você só encontra na livraria de rua
Um case de sucesso, o Outlet de Livro, instalado na Savassi, região Centro-Sul de BH, tem chamado a atenção devido às suas promoções “malucas”. É que, além de vender títulos a preços acessíveis durante todo o ano, em períodos historicamente de vendas mais baixas, o negócio também lança promoções como a de livros a R$ 1, que está acontecendo agora e vai até o dia 30 de abril.
O empresário e livreiro José Henrique Guimarães escolheu manter o ticket médio baixo da loja para movimentar o negócio. Tem dado certo. “A gente tem que se reinventar. Fazendo assim, por exemplo, a competição com o e-commerce fica igualada ou melhorada em preço e qualidade, porque o tráfego de rua está ali. A pessoa que passa na loja e vê o produto com preço competitivo com o on-line, vai comprar na loja”, defende.
Além disso, o atendimento personalizado, a indicação de obras e toda essa experiência que só o contato “corpo a corpo” com os livros oferece só são possíveis nas lojas físicas.
Na Jenipapo, também na Savassi, a presença do profissional do livro é fundamental. “O livreiro, normalmente, é um bom leitor. Aí, ele consegue perceber as nuances de estilo para conseguir indicar um livro adequado para cada um”, conta o sócio proprietário da livraria, Frederico Pinho.
A Jenipapo existe desde junho de 2022 e, atualmente, conta com cerca de 15 mil livros em suas prateleiras. Ela entrou no lugar da antiga livraria Ouvidor, que precisou fechar as portas naquele mesmo ano.
Eventos e clube do livro engajam leitores
Outra estratégia que complementa a movimentação na livraria Jenipapo é a realização de eventos, debates e até um clube do livro.
“A gente promove eventos culturais aqui e também temos um clube de leitura da livraria. Funciona assim: todo mês a gente indica três livros em um grupo aberto e as pessoas escolhem um para ler naquele mês. Depois, nos encontramos na livraria para falar do livro, de forma horizontal”. explica. O clube, atualmente, conta com cerca de 70 leitores.
Os livros indicados costumam ter o preço mais acessível e ser de entendimento mais amplo para atingir um público maior. A leitura da vez é o “Avesso da pele“, de Jeferson Tenório.
Além disso, a livraria também promove eventos literários e bate-papos. Já passaram por lá, por exemplo, nomes como a cantora Zélia Duncan e o escritor Marçal de Aquino.
A própria ANL lançou uma campanha para mobilizar as livrarias de todo o País. Com o mote “Visite uma livraria!”, a iniciativa dispõe de uma série de comunicações para serem usadas por livreiros e estimular a frequência nas livrarias.
Mas ainda é preciso de mais, avalia o presidente da ANL, Alexandre Fontes. Para ele, é preciso uma política nacional para proteção das livrarias que torne a concorrência entre o varejo físico e o digital mais justa, e movimente as livrarias de rua.
Legislação pode inaugurar nova era para as livrarias
Essa política já existe. Ou pelo menos, a sua forma. É o Projeto de Lei (PL) 49/2015, chamado de Lei Cortez em homenagem a um livreiro de mesmo nome que foi um dos entusiastas do projeto. O texto institui uma Política Nacional do Livro e regulamenta os preços.
O presidente da ANL explica: “Se você vai para Portugal, Espanha, Itália, Alemanha, França, Holanda, Japão, Argentina, México, e tantos outros, todos eles têm uma lei que protege as livrarias. Ao protegê-las, o ecossistema do livro também é preservado, assim como a bibliodiversidade e, em última análise, a sociedade. A Lei Cortez estabelece que os lançamentos literários não poderão ser vendidos com descontos superiores a 10% pelo período de um ano”.
A ideia é que, com isso, os preços praticados sejam semelhantes em todos os negócios, do digital ao presencial, nas lojas independentes e nas megastores.
“Leis como essa existem em todo o mundo para proteger, sobretudo, esse pequeno livreiro nas ruas. Aqui no Brasil, o varejo on-line pode pegar o livro que acaba de chegar ao mercado e vender com o desconto que quiser, mas, quando isso acontece, elimina-se a possibilidade das pequenas livrarias sobreviverem, porque elas não vão poder oferecer o mesmo desconto. Elas têm que pagar as suas contas, o salários dos funcionários, o aluguel do imóvel etc.”, elenca Fontes.
Segundo ele, a norma ajuda a fortalecer as livrarias e também estimularia a abertura de novos negócios. “Com mais livrarias espalhadas pela cidade, você também tem uma queda no preço do livro para o consumidor final, já que o editor sabe que o preço que ele estabelece para a obra será cumprido pelas livrarias e, portanto, se vê obrigado a colocar valores mais baixos no preço de capa”.
Diferentemente disso, um outro cenário seria assustador. “Imagine um país sem livrarias? Eu não quero isso para o Brasil. A leitura é importante para a sociedade como um todo. Quem lê, pensa melhor, é um melhor profissional, em qualquer área”, conclui.
Atualmente, o PL 49/2015 está no Senado Federal e seguirá diretamente para a Câmara, caso não haja solicitação para encaminhamento ao plenário.
O que os brasileiros andam lendo, afinal?
Para todos os entrevistados nesta reportagem, o interesse por livros permanece. O que muda, vez ou outra, é o público-leitor. Nas livrarias, por exemplo, adolescentes – principalmente do público feminino – vão em busca do gênero chamado “Young Adult“, e séries de fantasia. Já os idosos, geralmente, aposentados, partem em busca de clássicos da literatura.
O livreiro José Henrique Guimarães, do Outlet de Livro, observa o cenário. “A juventude, hoje, lê muito e, inclusive, há até competição de leitura nas redes sociais. Você tem leitores seriais que contabilizam quantos livros leram no ano. O interessante é que – e, desde o surgimento de Harry Potter é possível observar isso – o jovem começa com a fantasia e romances tipo o Young Adult, e amplia para distopia, ficção científica, terror, vão para romances, depois migram para as obras russas e literatura contemporânea”, analisa.
Além disso, um fenômeno que tem contribuído para popularizar os clássicos e manter os produtos a preços acessíveis é a quantidade de autores que estão caindo em domínio público, condição que permite a livre reprodução e exploração de obras intelectuais sem a necessidade de pagar direitos autorais.
“A cada ano, aquela geração de clássicos do final do século 19 e primeira metade do século 20 vai entrando em domínio público. Neste ano, entrou a obra de Graciliano Ramos. Até ano passado, só tinha uma editora o publicando, hoje, são várias. Aqui na loja, o livro dele custa R$ 20. George Orwell, por exemplo, entrou em [domínio público] em 2021, e hoje você vê um tanto de gente falando sobre os livros dele. Isso é ótimo para a cultura”, comenta Guimarães.
Por: Juliana Baeta
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