Com o aumento da população brasileira nas metrópoles, turismo urbano cresce nos grandes centros, buscando um olhar humanizado para a diversidade dos territórios
Aglomerados com mais de 100 mil habitantes, as grandes cidades brasileiras abrigam hoje 124,1 milhões de pessoas, ou 61% da população, segundo dados do Censo Demográfico 2022, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Dos 203,1 milhões de brasileiros consultados, a maior parte (57%) vive em apenas 319 municípios, e 41,8% estão no Sudeste. Ou seja, o Brasil tem, atualmente, diversas concentrações urbanas como a Grande São Paulo – 185, para ser mais exato. A capital paulista aparece em primeiro lugar no ranking, com 11,4 milhões de moradores – que quase dobram se contarmos os outros 38 municípios da região metropolitana.
E é nesse cenário que vem crescendo, também, o turismo urbano nos grandes e médios centros, sobretudo desde 2015. Isso porque, para fazer turismo, não é preciso tirar férias nem viajar para outro país, uma praia paradisíaca, um resort ou uma casa no campo: atividades turísticas podem ocorrer em regiões urbanas – inclusive na própria cidade em que vivemos – num fim de semana, feriado ou dia de folga.
“É possível fazer turismo urbano em qualquer cidade, mas isso não significa que se tenha o turismo como atividade econômica relevante em todo lugar. Existe hoje uma vontade social de contar as histórias dos territórios, de ter um olhar mais crítico e de trazer à tona narrativas que foram apagadas”, destaca Vanessa Correa, que atuou, entre 2015 e 2020, no Departamento do Patrimônio Histórico da cidade de São Paulo, onde implantou e coordenou a Jornada do Patrimônio [Leia mais em Uma jornada e tanto!].
De acordo com a pesquisadora, que é doutoranda na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), o turismo urbano permite olhar em volta com atenção enquanto caminhamos, o que é mais difícil quando estamos de carro ou apressados para um compromisso. “Na capital paulista, podemos conhecer, por exemplo, as raízes negras de bairros como a Liberdade e o Bixiga, mais famosos por suas tradições asiáticas e italianas, respectivamente. O maior cuidado que devemos ter, portanto, é identificar as diferentes histórias que se contam sobre um mesmo lugar, e não apenas aceitar narrativas que ‘vendem’ mais”, ressalta Correa, que acredita que apenas um turismo de base comunitária e local dê conta de oferecer toda essa complexidade e imersão.
Para a especialista, esse tipo de turismo possibilita entender que uma movimentada avenida pode ter sido, algum dia, um caminho indígena, por exemplo. “E aí o mero deslocamento pela cidade se torna uma rica experiência de fruição, de observação atenta aos detalhes e significados que se perderam com o tempo. Construímos nossas memórias a todo momento, pois elas mobilizam o passado em função dos nossos valores e questões suscitados no presente”, analisa a pesquisadora, que é cofundadora do Instituto Tebas, voltado à valorização das memórias negras e indígenas.
Mirando esse objetivo, Correa observa um boom de passeios guiados, da última década para cá. Eles costumam ser feitos em grupos pequenos, sem tantos impactos como o turismo de eventos, por exemplo. “É importante diversificar os locais de interesse, pois eles podem ir muito além das cidades históricas, de monumentos ou edifícios. Precisamos desconcentrar o turismo, para evitar problemas trazidos quando essa atividade é feita em massa, como impactos ambientais, redução de significados culturais e encarecimento do comércio e da moradia para quem vive nesses lugares”, alerta.
Mão dupla
Um destino turístico, além de ser atraente para aquele que o escolhe, precisa ser bom para os moradores, avaliam especialistas como David Carolla, professor dos cursos de Turismo e Teatro no Senac São Paulo. “É preciso que os habitantes também possam gostar e usufruir dos espaços, não só os turistas. Uma cidade deve ser pensada, em primeiro lugar, para quem mora nela. Quando você tem uma casa confortável, bem arrumada, sem grandes problemas, sentirá prazer em circular por ela e receber quem vem de fora”, afirma.
Como exemplo de ações interessantes da gestão turística em cidades brasileiras, Carolla cita a capital fluminense, onde o morador paga menos em atrações como o Corcovado e o Pão de Açúcar ao mostrar seu comprovante de residência. “Há municípios que oferecem até gratuidade aos habitantes, como incentivo para que conheçam o lugar onde vivem. E os benefícios devem ser de mão dupla: quem viaja expande seu repertório cultural e conhecimento; já quem recebe, pode ter tanto impactos positivos quanto negativos, dependendo de como o turismo é administrado e das políticas públicas locais”, observa Carolla, que atua no segmento do turismo cultural, além de ser integrante da companhia Azenha de Teatro, que promove passeios cênicos pela cidade, incluindo performances, encenações e músicas aos roteiros.
Na visão do professor, o cenário ideal do turismo – urbano ou não – deve conciliar guias, agências de viagem, atividades não predatórias, geração de emprego e renda, incentivos fiscais, soluções de infraestrutura e mobilidade, além de um movimento de preservação ambiental e patrimonial. “Turismo urbano não é só aproveitar lugares e arquiteturas, mas principalmente as pessoas. Ao se ter contato com a população local, é possível conhecer a cultura, respeitando-a e priorizando valores para uma convivência harmoniosa”, reforça Carolla, que prossegue: “O turista não pode chegar com visão de colonizador, provocar exclusão, gentrificação: precisa entender seu papel e o impacto de seus atos e de seu consumo”. Além disso, o especialista defende que o turismo esteja inserido num contexto de hospitalidade, nunca de hostilidade.
Algumas cidades no Brasil (como Curitiba) e no mundo (como Washington, Nova York, Barcelona, Amsterdam, Paris, Lisboa e Londres) são referências em turismo, segundo David Carolla, seja pela facilidade de locomoção, pelos serviços oferecidos ou por suas opções gastronômicas, culturais e de lazer. O professor cita, ainda, aplicativos gratuitos de mobilidade urbana que têm repercutido nas cidades. Alguns oferecem mapas de localização, com marcação dos principais atrativos e informações gerais, para acessar pelo celular também em modo offline.
“O mais interessante do turismo urbano, para mim, é brincar de se perder um pouco pela cidade, flanar sem rumo certo. Quando isso acontece, ficamos mais atentos ao nosso redor, percebemos detalhes, pequenas ruas, outros caminhos”, ressalta. O especialista indica, ainda, o programa Vai de Roteiro, lançado em outubro de 2022 pela Prefeitura de São Paulo, com 16 trajetos gratuitos pelos principais pontos da cidade (como Avenida Paulista, Vila Madalena e bairro do Ipiranga). O projeto contempla a diversidade cultural, gastronômica, ecológica e esportiva da capital paulista.
Respeito à diversidade
Algumas propostas de turismo urbano vêm privilegiando narrativas historicamente invisibilizadas. É o caso do Angana – Núcleo de Educação Patrimonial em Territórios Negros de São Paulo, que há oito anos promove uma revisão de apagamentos sistêmicos sofridos por populações negras, indígenas, LGBTQIAPN+, nordestinas e refugiadas, a partir de óticas antirracistas, decoloniais, feministas, anti-homofóbicas e antixenofóbicas. Por meio do projeto Ancestralidade Negra na Borda Leste da Pauliceia, o Angana tem como foco os bairros da Penha, Vila Matilde e Vila Esperança.
“No turismo urbano, os territórios negros são muito mais do que cimento e tijolos: são valores, simbologias e ancestralidade. Um museu vivo a céu aberto, que ocupa ruas, adentra vielas, praças e ressignifica instituições culturais. Os roteiros com essa pegada constituem, portanto, importantes ferramentas para que todos possam conhecer essas histórias, apropriar-se delas e entender que a memória é socialmente construída”, defende a turismóloga e educadora Thais Avelar, uma das coordenadoras do Angana.
Ela também cita a Constituição Federal, que em seu artigo 180 prevê a promoção e o incentivo ao turismo “como fator de desenvolvimento social e econômico”. “Por meio dele, buscamos compreender a formação da cidade, transformá-la em um espaço mais humanizado a partir da afetividade, da alteridade, do pertencimento, da cidadania, da ética e da responsabilidade social. Colocamos em relevo o que vai além da versão oficial, em paisagens e lugares que revelam o movimento da vida, mas que muitas vezes são negligenciados e não observados com a devida atenção”, acrescenta.
Outro coordenador do Angana, o historiador e doutorando em história social pela USP Marcelo Vitale da Silva, completa: “A emergência de novos sujeitos na produção de contranarrativas no tecido urbano é um fenômeno que tem se ampliado nos últimos seis anos. São, sobretudo, coletivos de ativistas que vêm traçando, em seus territórios, perspectivas críticas aos discursos e às representações hegemônicas que resultam nos apagamentos sistêmicos sofridos por diferentes populações. O percurso de valorização dessas memórias soterradas tem vindo à tona com a atuação desses grupos”.
Construindo pontes
O turismo urbano também possibilita visitar e conhecer bairros estigmatizados como simples dormitórios, desprovidos de muitas ações e opções culturais, vínculos ou memórias. “Ignoramos, por vezes, que moradores desses espaços construíram suas vidas nesses locais, frequentam ambientes de sociabilidade e têm trajetórias de migração em comum. Só vamos entender suas histórias e singularidades por meio de uma observação e de uma escuta atentas, que estejam abertas ao novo e construam pontes, promovendo a interação e a troca de conhecimentos e experiências comunitárias”, destaca o historiador e guia de turismo Mauricio Dias Duarte, que integra o Grupo Ururay, coletivo formado na zona leste paulistana, em 2014. Com recorte nos bairros da Mooca, Penha, São Miguel Paulista e Itaquera, o Ururay desenvolve ações de valorização do patrimônio material e imaterial da região, realizando roteiros, feiras, festivais, exposições e pesquisas.
Duarte acredita que a melhor forma de conhecer um lugar novo, do ponto de vista histórico, geográfico e cultural, é a partir do olhar de quem vive nele todos os dias. “Recomendo que os turistas reflitam bastante sobre as razões e os objetivos pelos quais querem visitar uma cidade ou região. Além disso, é importante estar atento às dinâmicas locais, para fortalecer restaurantes, artesãos, vendedores e agentes regionais”, destaca o historiador. Na outra ponta, ele considera que o turismo urbano, para ser um modelo responsável, não deve se apresentar como uma atividade-fim, mas complementar a outras já praticadas pelas comunidades.
Visitar para somar
No extremo sul da capital paulista, dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA) a cerca de 30 quilômetros do Centro, fica a Ilha do Bororé. O acesso mais fácil ao local é pelo Grajaú, de onde sai uma balsa que atravessa um trecho da Represa Billings. É lá que funciona a Casa Ecoativa, programa de gestão ambiental participativa criado em 1998 para valorizar artistas da região e ações voltadas à preservação do meio ambiente. Um dos roteiros da Ecoativa na Ilha do Bororé acontece dentro do projeto Itinerários de Resistência, do Sesc São Paulo, que desde 2021 é parceiro de iniciativas de grupos da região que promovem turismo de base comunitária. O projeto deve se desdobrar em uma série de videopasseios com moradores da região, a serem lançados em breve na plataforma Sesc Digital.
Nesse cinturão verde da cidade de São Paulo, com extensa área de Mata Atlântica, os visitantes têm contato com comunidades tradicionais, povos de terreiro de matrizes africanas, práticas de agricultura familiar e agroecologia. “No Grajaú, temos ainda um cenário muito potente de audiovisual, samba e artes urbanas, como o grafite e o hip-hop. São lugares culturalmente pulsantes, com pessoas criativas, trabalhadoras, que têm um legado e uma contribuição relevantes para a cidade”, conta Jai Lara, diretor de cultura e meio ambiente da Casa Ecoativa. Aos visitantes, recomenda Lara, é preciso chegar para somar, estar aberto à diversidade e ser cuidadoso com um espaço que não é seu. “Quem viaja ou se desloca, deve sair da sua zona de conforto para conhecer lugares e modos de vida diferentes, e aprender com isso. No turismo a céu aberto, é possível trocar ideias, provar comidas típicas e fazer um intercâmbio muito bacana, em que todos se beneficiem e tenham experiências enriquecedoras.
Por: Luna D´Alama