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Enchentes no Rio Grande do Sul: a tragédia das cidades não resilientes


O mundo mudou e aceitar este fato não é mais uma questão de escolha, e sim, de sobrevivência. Nossos regimes de chuvas, períodos de seca, temperaturas médias, nível do mar, tudo está em constante mudança e o posicionamento negacionista de muitos países, incluindo o Brasil, tem gerado situações calamitosas como esta que estamos enfrentando agora.


As enchentes que devastaram o sul do país nos últimos dias não podem ser consideradas fatos isolados. Por conta do aquecimento global, eventos climáticos como esse serão cada vez mais recorrentes. Ou seja, infelizmente, não poderemos impedir que eles aconteçam, mas podemos – e devemos - tornar nossas cidades mais resilientes a essas situações.


Ao todo são 336 municípios do estado do Rio Grande do Sul em contexto de calamidade, conformando uma tragédia que soma mais de 80 mortos até então. Mais de um milhão de imóveis estão sem energia. Famílias estão sendo resgatadas após uma semana ilhadas sem água potável, alimentos ou remédios. Voluntários de todo o país estão se descolando para o sul, levando barcos e caiaques para ajudar nas buscas e regaste das pessoas e animais. Campanhas de arrecadação de dinheiro, roupas e alimentos são divulgadas a cada instante. Difícil um brasileiro estar alheio a essa situação.


Cientificamente falando, o cenário de guerra foi impulsionado pelo enorme volume de chuvas das últimas semanas, uma situação, no entanto, que está longe de ser obra do acaso. Em dez dias choveu um quarto da quantia esperada para todo o ano e essa mudança no regime pluvial surgiu por conta da onda de calor registrada na região centro-oeste e sudeste do país, onde as temperaturas estão cerca de 5°C acima da média. Essa zona de calor foi responsável por impedir que a massa de ar frio avançasse em direção ao norte, causando um desequilíbrio climático na região sul.


O agravamento da situação, contudo, se deu não apenas pelas chuvas volumosas, mas porque elas caíram sobre cidades completamente despreparadas em diversos aspectos. A discussão já começa com a forma de implantação dessas áreas urbanas. A grande maioria delas cresce sem considerar a geografia do local, seus níveis de vulnerabilidade e a importância de preservar a natureza. São assentamentos que valorizam as localizações próximas a margens de rios ou lagos, incluindo também áreas planas e mais baixas. A ocupação dessas áreas alagáveis se torna extremamente prejudicial pois impede sua função no escoamento da água e na consequente prevenção de enchentes.


Muitas cidades que sofriam com alagamentos históricos ao redor do mundo já entenderam que a água precisa fluir e não ser barrada. Seguindo esta premissa, grande parte delas criou os chamados “parques alagáveis” (apenas na China existem mais 60), uma solução interessante para as regiões do sul do Brasil. Considerados sistemas de drenagem urbana sustentável, esses espaços retêm a água da chuva, tornando-se inutilizáveis para as pessoas no período de alagamento. No entanto, após a diminuição do nível da água, eles oferecem áreas públicas de lazer para a população aliando preservação ambiental e espaços públicos de qualidade.


Assim como os parques alagáveis, outras estratégias estão sendo colocadas em prática para lidar com as inundações urbanas ao redor do mundo, desde os pisos drenantes de Copenhagen até o destamponamento do rio Cheonggyecheon, em Seul, configurando exemplos que precisam ser revisitados e estudados.


Muito em breve as cidades do sul do Brasil começarão a ser reerguidas e essa reconstrução precisa vir sob uma nova ótica que leva em conta o cenário climático o qual estamos vivendo, pensando em desenhos urbanos, mas também em arquiteturas, preparadas para lidar com essas situações. A mudança é fundamental e sua efetividade já pôde ser vista em algumas cidades do sul do Brasil que aprenderam a lição com as enchentes do ano passado e conseguiram diminuir - mesmo que pouco - os efeitos das últimas chuvas. Isto se deu pois elas já haviam iniciado um processo de desocupação das áreas de várzea e de informação da população sobre situações climáticas extremas, outro ponto de fundamental importância.


Foi-se o tempo em que nós, brasileiros, nos orgulhávamos em falar que vivíamos em um "país abençoado", sem desastres ambientais por não estarmos inseridos em zonas sísmicas ou em rotas de furacões. Aceitar o impacto das enchentes e dos deslizamentos como situações de extrema gravidade faz parte de uma política pública de prevenção. Educar a população sobre como agir em casos como este do Rio Grande do Sul deve ser prioridade. Durante a última tragédia, os mapas de evacuação da capital do estado, por exemplo, estavam errados, apontando como áreas inundáveis os pontos elevados da cidade. Ou seja, a comunicação sobre tragédias no Brasil é feita de forma emergencial, faltam planos legíveis de evacuação e não existe comunicação preventiva de desastres. Além disso, o governo passa para a população a responsabilidade de decidir sobre em que momento evacuar sua casa ou não, sendo que o cidadão comum não possui informação precisa e nem conhecimento climático necessário para avaliar o grau da emergência.


São muitas instâncias que precisam ser trabalhadas para contornar essa situação, no entanto, todas elas começam com o ato de abolir o negacionismo climático, tanto no âmbito governamental quanto no privado. Em uma situação política na qual predominam as bancadas conservadoras no Congresso, é urgente entender que questões relacionadas a preservação ambiental, proteção de terras indígenas ou diminuição do desmatamento não devem ser tratadas apenas no âmbito econômico, mas sim, fazem parte da discussão climática.


Essa tragédia materializa mais uma vez os efeitos do aquecimento global e deixa como lição o fato de que a questão climática vai muito além de certificações verdes, ela exige o reconhecimento dos riscos e o direcionamento de políticas públicas - urbanas, ambientais, sociais e educacionais - para enfrentá-los, não como escolha, mas como estratégia para sobreviver.


Por: Camilla Ghisleni

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