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Lisboa Para Pessoas

Rute Nieto Ferreira: “A resistência é um processo normal da mudança das cidades”


Rute Nieto Ferreira é urbanista; trabalha com o estúdio dinamarquês Gehl a planear e desenhar cidades para pessoas. Nesta entrevista, fala sobre o valor da rua enquanto espaço de socialização, e também da importância da realização de projectos-piloto e da recolha de dados para sustentar transformações na cidade.


Foi no final de Setembro, na Costa da Caparica, em Almada, que o urbanista Daniel Casas Valle apresentou o futuro design das ruas, através de um livro, com esse título, em que se procura fazer chegar o conhecimento mais técnico – que muitas vezes não consegue sair do círculo do urbanismo – a quem nas Câmaras Municipais decide e trabalha o território, mas não só. Também a pessoas comuns, que usam a cidade, que têm os seus negócios com porta aberta para o espaço público, que se movimentam diariamente por ruas cheias de carros.


Nessa apresentação do livro na Costa, que foi seguida por um workshop que colocou técnicos municipais e população a reimaginar a envolvente do mercado municipal, Daniel não esteve sozinho. Do Porto, deu boleia a Rute Nieto Ferreira. É arquitecta e urbanista, por isso, colega de profissão. Rute tem perto de duas décadas de experiência em vários ateliês, trabalhando actualmente, a partir da cidade Invicta, no conceituado Gehl Architects – estúdio dinamarquês fundado em 2000 pelo conceituado Jan Gehl e também pela designer urbana Helle Søholt, com o objectivo de dar continuidade ao trabalho de Gehl no que toca a pensar as cidades de uma perspectiva mais humana. A pensar as cidades além dos edifícios, na vida entre edifícios. A desenhar ruas, praças, espaços públicos que centralizam as pessoas, incluindo as crianças, e onde existem dinâmicas sociais. A falar de qualidade de vida, do andar a pé, da bicicleta.


A Gehl já fez projectos em mais de 300 cidades. Rute Nieto Ferreira assina alguns destes trabalhos, a partir do Porto. A azáfama das actividades na Costa da Caparica não nos permitiu tirar tempo para sentar e conversar com calma, pelo que marcámos um zoom para dias depois. Na entrevista que agora se publica, falamos da importância da rua enquanto espaço de socialização, e também da importância da realização de projectos-piloto e da recolha de dados para sustentar transformações na cidade junto dos decisores e da população; falamos também do papel do ensino, da falta de transparência em relação a projectos de urbanismo, e da criação de consensos em cidades polarizadas.


Começo com uma provocação: como defines o futuro design das ruas? E nós aqui em Portugal estamos assim tão distantes desse futuro?

As ruas são um dos blocos principais de fazer cidade; por isso pensar no futuro das ruas e dos espaços é fundamental. Parece-me que em Portugal tem havido algumas mudanças positivas, mas que está tudo a acontecer muito devagar. Acho que se percebe que tem de haver uma recalibração, um reequilíbrio do espaço que é alocado ao automóvel privado e aos outros modos de as pessoas se movimentarem.


Mas isso não está a acontecer de uma maneira muito sistemática e muito conectada, e também não de uma forma rápida o suficiente. Parece que se percebe a teoria, mas que a prática está a demorar muito a acontecer.


“Tem de haver uma recalibração do espaço que é alocado ao automóvel privado e aos outros modos de as pessoas se movimentarem. Mas isso não está a acontecer de uma maneira muito sistemática e muito conectada.”


Porquê? Se temos tantas referências e casos de sucesso de tantas cidades que poderíamos simplesmente aplicar.

Não sei muito bem responder a pergunta do porquê. Posso fazer algumas suposições que podem ser erradas. Parece-me que há pouca vontade política. Que em Portugal se pensa muito a curto prazo, ou seja, nos próximos três, quatro anos de mandato; não há numa vontade política a longo prazo, em que se pense em gerações. Há bons pequeninos projectos aqui e ali, mas que não se pensa de uma maneira sistemática. E às vezes também não há coragem política para fazer certas coisas.


Nós, na Gehl, temos exemplos de projectos que fizemos em cidades, como Copenhaga ou Nova Iorque, e que foram transformações relativamente rápidas. Mas não é só a questão da rapidez. É fazer-se rápido e com consistência. Ou seja, nessas cidades não houve um pára arranca. Quando começaram começaram a sério e depois todos os anos houve pequenas melhorias. Quando se olha para fotografias de Copenhaga nos anos 1950, até aos anos 1960, vemos que ela era muito parecida com muitas partes de Portugal: praças cheias de estacionamento, o carro era muito visível no centro da cidade. E começou gradualmente a fazer ruas pedestres. Começou por uma rua, depois essa rua foi alargada, depois fez mais duas, três, quatro. Todos os anos houve ruas e praças de onde se tirou estacionamento para as pessoas ganharem esses espaços, que eram dos automóveis e que passaram a ser delas. Foi feito aos bocadinhos, mas nunca sem sem separar.


Ou seja, houve essa coragem inicial e depois as próprias pessoas perceberam também que era uma coisa positiva. E assim se foi se continuando.


O exemplo de Nova Iorque é mais recente, é dos anos 2000; lá, em três anos fizeram-se mais ciclovias do que na altura havia em Copenhaga, em termos de quilómetros. Houve uma vontade enorme do Presidente da Câmara e do seu gabinete de transformar Nova Iorque numa cidade em que se usasse a bicicleta, numa cidade em que se pensasse nas praças e ruas como espaços para estar, em que as pessoas também contassem – não só os carros.


“Houve essa coragem inicial e depois as próprias pessoas perceberam também que era uma coisa positiva. E assim se foi se continuando.”


Como provocamos essa vontade política inicial? Como é que convencemos os decisores?

Acho que, às vezes, nem é uma questão de convencer, é mais uma questão de demonstrar. Há casos que se podem fazer projectos-piloto, mostrando as coisas em vez de só falar sobre elas. Podemos começar a uma escala pequena e fazer pequenos projectos de demonstração. E podemos recolher dados do antes, durante e depois, também para acalmar as pessoas, como os comerciantes que acham que vão perder os negócios mas que percebem depois que não e que, afinal, as pessoas que chegam a pé ou de bicicleta até compram mais vezes, até vêm mais vezes às lojas.


Ou seja, às vezes é preciso chegar com coisas concretas. Não é só explicar que funcionou bem na cidade X ou Y, mas sim na própria cidade e fazer estes projectos demonstrativos.


Pode também haver algum medo em testar, não?

Mas esses projectos são de baixo risco, porque por serem temporários dá sempre para voltar ao que havia antes e não há grandes custos de infraestruturas. Porque estamos a falar de pôr barreiras que são amovíveis, de pintar o pavimento, de fechar uma rua temporariamente. Até se pode começar por fazer só ao fim-de-semana ou de X em X tempo.


“Às vezes é preciso chegar com coisas concretas. Não é só explicar que funcionou bem na cidade X ou Y, mas sim na própria cidade e fazer estes projectos demonstrativos.”


Estas coisas são relativamente simples e depois, se funcionarem, com os dados e com as observações feitas de como correu, podemos passá-las de temporárias a definitivas. E aí já é quase uma conquista das pessoas. Foi um teste que foi feito, que se descobriu que sim, que valia a pena, e que foi algo em que toda a gente esteve envolvida, em vez de ser uma coisa que veio de cima, de uma Câmara Municipal ou de um departamento qualquer que aparece a dizer que vai implementar e que começa logo na rua a partir coisas.


Acho também que há um problema nisto de envolver a população. Digo isto mais como cidadã – porque infelizmente trabalho em poucos projectos em Portugal –, mas acho que há uma falta de comunicação enorme dos projectos, tanto de arquitectura como de espaço público. É muito difícil perceber-se o que é que está ou vai a acontecer num quarteirão ou numa rua. Há aquelas tabuletas que estão sempre estragadas pelo vento ou pela chuva, mas não uma plataforma digital em que eu possa ver o que é vai ser na minha freguesia, quais são os projetos que vêm aí. As coisas são um bocado secretas. Não há este debate sobre urbanismo. Parece me que isto é uma coisa muito fechada, não é feita de forma clara, com todos.


Nota diferença com outras cidades?

Sim. É claro que a minha experiência é limitada. Trabalhei bastantes anos em Inglaterra, alguns anos em São Francisco e pouco tempo em Estocolmo. Por isso, tenho uma experiência só dessas cidades. Mas, por exemplo, no Reino Unido desde que um projecto de urbanismo existe – não é preciso ser aprovado –passa a estar no domínio público. Ou seja, eu posso ir investigar a minha rua, as minhas redondezas ou uma área específica em que estou a trabalhar e ver quais são os projectos activos. Eles não têm que estar licenciados ainda. Tem só de alguém ter pedido uma modificação para já estar online e eu poder consultar os desenhos, a memória descritiva, etc. Quer sejam projectos públicos, quer sejam projectos privados.


Isto em Portugal seria impensável. Esta comunicação do que se passa nas ruas, nas praças, nos edifícios, não é feita. Não é algo de fácil acesso, parece que é uma coisa só para alguns, só para os que percebem. E como não há um debate aberto aos cidadãos em geral, geram-se desconfianças. As pessoas ficam a achar que não há boas intenções porque as coisas não são faladas. E eu acho que essa desconfiança não é errada da parte das pessoas. Existe por causa dessa falta de abertura.


“Há uma falta de comunicação enorme dos projectos, tanto de arquitectura como de espaço público. É muito difícil perceber-se o que é que está ou vai a acontecer num quarteirão ou numa rua. As coisas são um bocado secretas. Não há este debate sobre urbanismo.”


E essas desconfianças não são só sobre que projecto vai ser feito, mas o porquê desse projecto.

Exatamente. Eu acho que Portugal, pelo pouco que conheço, como cidadã, acho que há um fosso enorme entre a questão do PDM [Plano Director Municipal] e a questão dos projectos de execução. Não há nada entre estas duas escalas. O PDM é uma ferramenta um bocado fria, rígida, estática. E depois há os projectos para partir pedra, para fazer ciclovias, praças, ruas.


E no meio, entre estas duas coisas, onde é que está o projecto estratégico? Onde é que está essa tal visão de futuro que explica que se está a fazer esta obra porque há 10 ou 20 ano se definiu um corredor verde? Onde está esse porquê das coisas? O PDM muitas vezes não faz isso. E depois também não se percebe de onde é que vêm esses projectos pontuais.


Por isso, às vezes falta este intermédio, estes projectos estratégicos, para fazer ligações entre as coisas, para criar sentidos, e se calhar devem ser pensados mais à escala do bairro, não da cidade inteira. Obviamente que não é fazer planos por fazer planos; é fazer planos com esta perspectiva de andar para a frente.


Como é que podemos levar o conhecimento de urbanismo, que muitas vezes está na posse só dos especialistas, até às pessoas? E como é que o podemos activá-lo junto delas? É com debates, por exemplo?

Eu acho que a escola é fundamental. Nós todos andamos na escola. E acho que se fala muito pouco sobre urbanismo, sobre cidades, sobre qualidade de vida, sobre transportes. E não é só falar, acho também há pouco engajamento entre as crianças e a sua própria cidade. As visitas de estudo são poucas e poucos os professores que metem os miúdos no metro. Não conheço muitos projectos para ensinar as crianças a andar de bicicleta ou para colocá-las a ir a pé de casa para escola. E os projectos que há são excepções.


Assim, acho que esta relação entre a escola e a cidade podia ser muito maior. Começar desde pequeno tem vantagens, sabemos que são coisas que têm frutos mais tarde. Se começas a andar mais a pé ou de bicicleta em criança, é algo que fica para o resto da vida, com mais valias ao nível de saúde pública, ambiente, até saúde mental.


Mas sim, debates e palestras também são importantes para essas transferências. Os tais projectos-piloto, de que já falámos. E mesmo o próprio tempo de antena que estas coisas têm na rádio, na televisão, nos jornais, e que é muito pequeno em Portugal. Quanto maior é esse tempo de antena mais reflete uma sociedade que tem interesse nestas coisas, que fala sobre elas, que as debate. Eu acho que tem de vir por várias fontes. Não há só uma uma abordagem que vai resolver esta questão. Mas se se eu tivesse que escolher uma para para me focar, focar-me-ia na questão das crianças e da escola.


“A relação entre a escola e a cidade podia ser muito maior.”


Falta também uma capacitação maior do corpo técnico das Câmaras e entidades que decidem o território.

Sim, claro. Acho que sim. Acho que se houver uma mudança de mentalidade, é muito mais fácil que as coisas aconteçam. Aliás, o Jan Gehl, que fundou e deu o nome à empresa onde trabalho, diz sempre que a coisa mais importante que ele fez não foram projectos: foi escrever livros, porque os livros chegam a mais pessoas. E com eles podes conseguir que um Presidente de Câmara, um departamento, que meia dúzia de pessoas influentes mude a sua mentalidade, que percebam algumas coisas relativamente a qualidade de vida, ao acesso a ruas para caminhar, a praças para se estar e para socializar, ao acesso a pé a comércio e serviços, à existência espaços de lazer, etc. Que percebam pequenas coisas relativas à cidade e como pode funcionar. Isso já é um grande caminho, porque se as pessoas percebem as coisas, se sentem essas questões, os projectos são mais fáceis de fazer e de concretizar.


Os argumentos e resistências são muitas vezes os mesmos. Existem vários padrões. Se os problemas levantados pelos comerciantes, por exemplo, são sempre os mesmos e se, na maior parte das vezes, retirar espaço ao automóvel não prejudica o seu negócio, porque é que estamos sempre a bater nas mesmas teclas?

Eu acho que é normal, porque somos todos humanos e temos todos resistência à mudança. Por isso, eu acho que não se deve culpabilizar os comerciantes ou as pessoas que se opõem às coisas por terem essa reacção negativa. Porque mudar uma coisa que funciona mais ou menos causa sempre uma resistência; é um processo normal da mudança das cidades. É mais fácil fazer esta mudança se houver exemplos concretos de outras ruas, com os quais se possa mostrar o antes e o depois, mostrar com dados e com estudos.


Acho que também não podemos ser naive e achar que as coisas funcionam sempre. É por isso que se fazem projectos-piloto. Às vezes, temos de recuar, reanalisar e mudar o plano inicial. Numa rua cheia de comerciantes, onde são todos diferentes, vai haver provavelmente um ou outro que fica a perder por ter uma clientela muito específica que deixa de vir, porque chegava sempre de carro ou por um motivo muito específico. Não podemos ser demasiado optimistas e achar que uma determinada mudança vai resultar para toda a gente.


“Acho que também não podemos ser naive e achar que as coisas funcionam sempre. É por isso que se fazem projectos-piloto. Às vezes, temos de recuar, reanalisar e mudar o plano inicial.”


Cada caso é um caso e acho que temos de pensar também nas pessoas que não têm todas as faculdades, que vão precisar de ser levadas de transporte até certos sítios. Por isso, acho que tem que haver sempre excepções. E, além disto, não estamos a falar de uma radicalização de tirar os automóveis de todo o lado. Acho que os carros vão ser precisos e nós vamos ter que coexistir com eles durante várias décadas. Agora é muito diferente ter um carro de vez em quando e que anda a cinco ou dez quilómetros à hora, ou seja, à velocidade de um peão, ou ter a 50 ou mesmo 30 quilómetros à hora. Ou quando se tem um fluxo enorme em que as pessoas têm que andar ali no meio a fazer gincanas em vez de serem os carros a fazer gincana. Tem é de haver um reequilíbrio, pensando primeiro nas populações mais vulneráveis, que, no fundo, são as crianças e os mais velhos. E quando se pensa nos mais vulneráveis quase sempre se faz uma cidade melhor para para toda a gente, não é?


Temos visto as cidades divididas e polarizadas entre o que é o automobilista e o que é o ciclista, sendo que esses papéis não são absolutos. Como conseguimos criar consensos?

Eu não acredito que haja uma só uma resposta. Acho que têm que ser várias coisas ao mesmo tempo. Acho que não há uma maneira de convencer ou de dizer que uns estão errados e outros estão certos. Uma coisa é verdade: os automobilistas e os ciclistas são todos pessoas e também quase todos, quase de certeza, andam a pé. Por isso, vamos voltar às coisas essenciais: nós somos todos pessoas que, mais ou menos, nos movimentamos ao mesmo tempo, à mesma velocidade: temos, mais ou menos, os mesmos sentidos, a mesma altura, uns de carrinho de bebé, outros de cadeira de rodas. Mas somos todos humanos, há certas coisas que todos queremos. Mas acho que as pessoas estão muito focadas no individual e no pensamento de que precisam do seu carro para irem trabalhar. E claro que precisam.


“Acho que não há uma maneira de convencer ou de dizer que uns estão errados e outros estão certos. Uma coisa é verdade: os automobilistas e os ciclistas são todos pessoas e também quase todos, quase de certeza, andam a pé.”


Não podemos culpabilizar o indivíduo porque esse indivíduo fez aquela escolha porque é a melhor escolha. É a escolha que pode fazer neste momento. Ou seja, se não há transportes para essa pessoa ir trabalhar e chegar a tempo e horas e depois ir buscar os filhos à escola e depois ainda ir ao supermercado e depois não sei quê, não se vai culpabilizar o indivíduo por precisar de trabalho e precisar do carro para ir para esse trabalho. Como humanos, vamos escolher o que é mais fácil, mais conveniente para fazermos a nossa vida do dia-a-dia.


Mas precisamos também que as infraestrutura das cidades estejam lá disponíveis para nós, porque senão as escolhas vão ser as que nós conseguimos fazer e não as que são mais acertadas para o planeta ou para a saúde pública. Nós estamos neste dia-a-dia nas cidades com muito trânsito e com falta de qualidade de vida, muito por causa de automóvel. O desfazer não vai ser tão rápido como se calhar gostaríamos, mas eu acho que o desfazer não passa pela culpabilização do indivíduo, mas pela existência de infraestruturas, que têm de ser feitas aos poucos – mas consistentemente –, permitindo que naturalmente as pessoas adoptem outros estilos de vida, com mais valias para a sua saúde e para a sua qualidade de vida.


“Não podemos culpabilizar o indivíduo porque esse indivíduo fez aquela escolha porque é a melhor escolha. (…) Mas precisamos também que as infraestrutura das cidades estejam lá disponíveis para nós, porque senão as escolhas vão ser as que nós conseguimos fazer e não as que são mais acertadas para o planeta ou para a saúde pública.”


Ninguém quer cidades sem carros. Apenas cidades com menos carros.

Sim, mas essa questão também passa por alguns momentos de coragem política, por assumir algumas ideias que podem parecer mais radicais, mas que às vezes têm que acontecer, como, por exemplo, o caso dos centros da cidade. Não se pode hoje em dia dizer que – porque há tantos exemplos – é radical retirar carros dos centros da cidade. Temos cidades como Londres em que a poluição no centro da cidade reduziu imenso desde que se criaram restrições ao automóvel. Começou-se por uma zona pequena e foi-se alargando várias vezes. Há outros casos e estudos em várias cidades europeias em que se retirou carros do centro com resultados muito positivos. As pessoas continuaram a ter carros, mas passaram a existir mais regras em relação a onde usar o carro e porquê. E quem ganha são os centros das cidades, as pessoas que lá estão, que lá chegam de outra maneira, que passam a mover-se mais, a socializar mais.


As ruas não são só para os seus residentes. Muitas vezes, ouvem-se apenas as pessoas que vivem em determinado sítio e que bloqueiam transformações que vão servir outros. Como é que podemos criar equilíbrios aqui?

Voltamos ao início da conversa, sobre as ruas e praças. São fundamentais para a vida urbana e temos que acertar neste básico, de um planeamento urbano mais humanista. Caminhar e andar de bicicleta são todos na sociedade, não só para alguns. E as ruas e os espaços públicos devem ser pensados também como espaços para as pessoas se encontrarem e socializarem. Se tirarmos isso, tiramos o que é ser cidade. Não estamos a falar de um centro comercial ou de um sítio em que estás lá porque estás a consumir, ou porque estás a tomar café, ou a gastar dinheiro nas lojas, ou seja o que for. Estamos a falar do princípio de cidade, que é caminhar, parar, viver.


“Não se pode hoje em dia dizer que – porque há tantos exemplos – é radical retirar carros dos centros da cidade.”


As nossas ruas e praças não podem ser só comerciais…

Sim, mas isso faz parte. Quando pensamos em espaço público, também pensamos nesses espaços comerciais, mas os espaços públicos não podem ser só os associados a zonas comerciais, ou seja, se há uma praça que tem mesas e cadeiras de café – que eu acho bem que tenha porque, na maioria dos casos, trazem vida – também tem de haver espaços, bancos e formas diferentes de estar onde não seja preciso estar a gastar dinheiro, onde se possa trazer um café ou uma merenda de casa ou sentar-se para falar com um amigo. Isso também é fundamental.


Falamos das ruas entre as fachadas, mas precisamos de olhar também para o que acontece atrás das fachadas.

Sim, absolutamente. Acho que isso está tudo relacionado. E voltando à questão de nós sermos todos seres humanos, estes convites que as cidades nos fazem para caminhar também tem muito a ver com a forma urbana, com a forma como as cidades e as suas ruas se apresentam. Isso não tem a ver apenas com a largura da via ou do passeio, também tem a ver com as fachadas que se encontram com esse passeio, se são vivas e activas, ou se são passivas, por exemplo, porque existe um grande muro ou gradeamento. Se calhar, neste caso, sentes-te com pouca segurança a andar ali e penas “pá, que chatice, agora andar 800 metros ao lado de uma parede que não tem nada para ver”. É diferente se tiveres casas, lojas, se tiveres portas e janelas, se tiveres arte urbana. É diferente ter lojas abertas ou fechadas, as cores, as texturas… Estes convites a caminhar são super importantes e têm a ver a forma com como se fazem ruas, como se fazem cidades.


Têm a ver com pensar o espaço entre edifícios.

Exacto. Esta questão de desenhar e planear ruas não é uma questão de termos X metros para os peões e X metros para os carros. Não é só isso, é também a questão das fachadas. Uma coisa importante em que nós trabalhamos muito, que também vem do Jan Gehl, é a questão de primeiro pensar sempre que vida é que se quer num espaço, depois pensar no espaço entre os edifícios e só depois pensar nos edifícios. Isso é uma coisa que nós utilizamos em quase todos os projectos, sejam eles de espaço público, sejam eles de master planning.


Ok, fazemos um passeio de metro e meio. Mas um metro e meio para quê? Quero esse passeio com que função? Quero, por exemplo, que um pai e um filho caminhem confortavelmente e que outra pessoa possa ultrapassá-los sem problema? Isso é uma maneira de andar, de viver. É preciso um passeio com uma certa distância para se poder ter esse tipo de socializacão na rua. E depois há uma paragem de autocarro, sinalética ou outros elementos de mobiliário urbano. Ou seja, há que pensar na vida que se quer ter naquele passeio, na vida que se quer ter naquela praça ou naquele bairro; depois, desenhar os espaços entre os edifícios e depois é que sim, passar na parte dos edifícios, das fachadas.


“Esta questão de desenhar e planear ruas não é uma questão de termos X metros para os peões e X metros para os carros.”


E para se planear esta vida também temos de ver como as pessoas já usam os espaços, não é?

Sim, investigar como é que as pessoas usam o espaço. Isso, para nós, é uma ferramenta de trabalho importante. Nós não chegamos como especialistas e dizemos “ah, nós já temos muita experiência, já fomos a muitas cidades”. Não, em quase todos os sítios tem que se fazer uma certa pesquisa, no local. Nós usamos algumas ferramentas que já usamos há muitos anos, como fazer levantamentos à vida urbana e ao espaço. Não é só um levantamento físico – no sentido de onde é que está o passeio, onde é que está o edifício, quais são as dimensões –, mas também como é que estão as pessoas a usar esse espaço, quantas pessoas caminham a pé, qual é o sexo, qual é a idade, qual é o modo de transporte, é a pé, de bicicleta, de trotineta, de skate. Normalmente temos nas cidades dados sobre carros, mas não há muito sobre pessoas. Não se observa muito como é que as pessoas estão a utilizar os espaços, e essa observação, essa contagem, tanto das pessoas a mexer-se como as pessoas paradas, é fundamental no planeamento. O que é que elas estão a fazer? Estão sentadas? Estão ao telemóvel? Estão sentadas a comer? Estão sentadas ou deitadas? Ou estão só encostadas porque não havia onde sentar?


Todos esses tipos de observações são muito importantes para nós quando começamos um projecto para um município. E aprende-se imenso com cada sítio, porque cada sítio é diferente Temos de perceber a vida para depois se dar recomendações a partir de dados reais e não de coisas inventadas. Muitas vezes, podemos olhar para trás porque foi um sítio onde já se fez contagens e observações, outras vezes podemos comparar uma praça em Lisboa com uma praça noutra cidade que tenha as mesmas dimensões ou serviços semelhantes. Como nós já temos uma base de dados alargada, conseguimos comparar e aprender com exemplos concretos de sítios geográficos diferentes.


E os estudos não podem servir para empatar?

É mais caro fazer a coisa mal feita do que estar a fazer um estudo. E o estudo, se for bem feito, é uma coisa que fica para muitos anos, ficas com um plano de trabalho, com uma espécie de uma visão, de algo que te guia. Se calhar não ficas com o pormenor, mas ficas com a essência do que vais tentar fazer. Por exemplo, há um melhoramento desta praça, mas porque é que se investiu esses fundos aí? É aí exatamente onde as pessoas mais estavam a pedir esse tipo de investimento ou seria melhor fazer um estudo para se dar prioridade a outras zonas? É ter algum pensamento racional em relação ao porquê investir em certos locais.


Às vezes, não se entende muito bem porque é que certas coisas foram melhoradas e outras não. Parece que foi porque aquelas pessoas falaram mais alto, porque tiveram acesso aos fundos primeiro ou porque é uma zona mais privilegiada. Há sempre contra-argumentos, mas o que nós tentamos fazer com estes estudos é pensar nas pessoas. É por isso que eu digo que é um planeamento urbano mais humanista. É pensamos naquilo de que é que as pessoas precisam.


“Normalmente temos nas cidades dados sobre carros, mas não há muito sobre pessoas. Não se observa muito como é que as pessoas estão a utilizar os espaços, e essa observação, essa contagem, tanto das pessoas a mexer-se como as pessoas paradas, é fundamental no planeamento.”


Mesmo quando não faz parte do que um cliente nos pediu para fazer, nós tentamos fazer na mesma um mini-estudo ao contexto, porque senão não conseguimos chegar com propostas concretas e justificadas. Não conseguimos dizer porque fazer assim sem alguns dados, sem passar tempo em campo a analisar, a angariar dados quantitativos e qualitativos.


Para fechar: o que achaste daquele dia na Costa da Caparica? O que tiraste daquele workshop?

Foi uma excelente ideia fazerem aquilo na rua e no espaço público. Foi excelente terem feito a Semana da Mobilidade num fórum tão aberto, gerando-se um debate público que foi completamente não planeado. Isso foi super interessante para mim. Eu não conhecia muito o sítio antes, mas fiquei contente de ver aquela rua pedestre tão cheia de vida, com lojas abertas, com pessoas a caminhar, com aquele troço entre a praia e o centro, que me pareceu muito bem feito. Claro que é impossível como designers andarmos ali e não estarmos a ver que tipo “ah, mas aqui podia ter um passeio contínuo ou isto ali poderia ter sido feito assim”.


No workshop, tivemos uma conversa bastante envolvida, com pessoas relativamente entendidas e que conheciam bem o contexto – a maioria eram técnicos municipais ou trabalhavam com a Câmara. Houve bastante interesse em falar sobre aumentar o tamanho daquela praça para incluir o mercado e depois pensar numa hierarquia viária, fazendo zoom out para pensar não só à escala da praça, mas como se mudaria o trânsito nas ruas periféricas e em todo o bairro. Pensou-se de uma maneira relativamente estratégica e com pessoas que já estavam a pensar nisso há bastante tempo, por isso foi uma boa conversa.


Por: Mário Rui André

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