Andar a pé ainda faz parte do dia a dia de muitos indivíduos, por lazer ou necessidade, e é o objeto de estudo do projeto de pesquisa “Caminhabilidade: Subsídios para Cidades Saudáveis e Sustentáveis”, coordenado pela professora do curso de Arquitetura e Urbanismo Milena Kanashiro.
A iniciativa surgiu em 2016, quando o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) selecionou 16 pesquisadores para uma missão em Londres, em parceria com diversos países. Na viagem, foi levantada a questão das Healthy Cities (Cidades Saudáveis) e seus benefícios para a melhoria da mobilidade urbana. Kanashiro conta que através dessa experiência foram iniciados os estudos no projeto da Universidade, que hoje conta com 10 colaboradores de pós-graduação e mais 3 de graduação.
Caminhabilidade é um termo derivado do inglês Walkability e, de acordo com o Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil), é “a medida em que as características do ambiente urbano favorecem a sua utilização para deslocamentos a pé”. A pós-doutoranda Ana Luíza Favarão Leão, que já fez parte do projeto, explica que a caminhabilidade é uma qualidade urbana dentre várias que existem nos estudos. “ Ela é comumente medida de forma quantitativa para que possamos atribuir um número. Assim, podemos criar uma comparabilidade que auxilia a tomada de decisões de investimento público, por exemplo”.
Através da análise das características do espaço geográfico, é possível formular um índice de caminhabilidade, ou seja, o quão caminhável algum lugar é. O projeto de pesquisa analisou três cidades do norte do Paraná – Londrina, Cambé e Rolândia – e utilizou inicialmente índices aplicados em outros países. Os desafios começaram a se mostrar na complexidade encontrada ao aplicar essas medidas no Brasil. Segundo Kanashiro, existem duas escalas a serem analisadas nesse quesito: a macroescala, que contempla a estrutura urbana como tamanho dos quarteirões, habitantes por hectare e proporção residencial; e a microescala, que abrange elementos como a qualidade das calçadas, cruzamentos, iluminação, vegetação, entre outros.
“Uns só medem a macroescala, outros, apenas a microescala. É possível juntar as duas coisas e medir efetivamente a caminhabilidade?” indaga a coordenadora. “É muito difícil medir isso, é muita coisa e muito levantamento a ser feito. Para isso, usamos inteligência artificial para poder capturar essas qualidades e assim fazer a análise”.
O caminhar no Norte do Paraná
Na análise das três cidades, as pesquisadoras encontraram inúmeras diferenças entre os níveis de caminhabilidade. Londrina, por ser uma cidade maior em comparação à Rolândia e Cambé, apresentou índices mais equilibrados entre macro e micro escala. Já nas outras duas, “os índices menores, utilizados no resto do mundo, foram menos importantes que a presença de determinadas características da micro escala”, conta Favarão.
Mesmo tendo um equilíbrio maior nos índices de caminhabilidade, Londrina apresenta bairros difíceis ao caminhar, como o Gleba Palhano. “Tem grandes quadras, somente agora que podemos ver comércio e serviços ali perto. No começo, eram só residências, dimensões muito grandes e um relevo que não contribui [com a caminhabilidade]”, explica Kanashiro. Favarão ressalta a relação que os espaços caminháveis têm com o fato de a cidade ser onde os fenômenos sociais acontecem. “Você se sentir em casa na sua cidade é um aspecto importante, e a caminhabilidade é uma das coisas que fomenta isso, essa coisa de ter vontade de viver na sua cidade, de viver na rua, caminhar, aproveitar, encontrar pessoas, etc.”, avalia.
Em Rolândia, a população se destaca pelo uso da bicicleta. Segundo Favarão, a cidade tem “índices de deslocamento de bicicleta próximos de índices europeus”, estimulados pelo tamanho e a geografia plana da região. Já em Cambé, foram observados variáveis que desmotivam a adoção do transporte ativo na cidade. “A presença de lotes vazios e vegetação abandonada, por exemplo, desestimulam o deslocamento à pé”, revela a pesquisadora.
No meio do caminho ainda tem pedra
A caminhabilidade compreende bem mais que a qualidade de uma calçada ou a distância até a farmácia mais próxima. O bem estar de grupos minoritários também se relaciona com o planejamento urbano de uma cidade. Dentro do projeto de pesquisa, vários campos de estudo se ramificam, e englobam diferentes aspectos da caminhabilidade. Um deles é o estudo de gênero e como os espaços urbanos seguros fazem a diferença no dia a dia das mulheres.
Segundo estudo realizado em 2017 pelos institutos Locomotiva e Patrícia Galvão, 68% das brasileiras têm muito medo de andar sozinhas e à noite no bairro onde moram. Kanashiro cita o trabalho feito na zona norte de Londrina, onde os índices de violência contra a mulher e níveis maiores de caminhabilidade se sobrepunham. Foram entrevistadas pedestres que se deslocam próximas a avenida Saul Elkind, fazendo um percurso entre dois colégios.
“Foi pedido para as mulheres entrevistadas que indicassem o caminho mais seguro que uma moradora pudesse fazer”, explica a docente. “O elemento mais importante para a segurança dessas mulheres foi o fato de haver mais pessoas na rua, quer seja um espaço mais comercial, ou onde os moradores ficam mais na rua, na varanda, na calçada. Foi nesses lugares que as mulheres se sentiam mais seguras e mais vistas”, expõe.
Favarão menciona que uma cidade que é boa para mulheres, também se mostrará boa para demais grupos como idosos, crianças e pessoas com deficiência. “Baseados no estudo urbano, pensamos que a promoção da qualidade urbana, a partir de sua existência, vai atender a todos, incluindo as minorias”, afirma.
Saúde por todas as vias
Além de se aprofundar amplamente em Arquitetura e Urbanismo, o projeto de pesquisa possui caráter interdisciplinar. O tema se relaciona intensamente, por exemplo, com o campo da saúde, e a caminhada como atividade física.
A pós-doutoranda ainda ressalta que a adoção deste tipo de deslocamento gera um “impacto muito grande na saúde mental”. Estudos da Organização Mundial de Saúde comprovaram que pessoas mínima ou moderadamente ativas têm menos probabilidade de desenvolverem transtornos mentais como ansiedade, depressão e estresse do que indivíduos sedentários.
As pesquisadoras abordam o tema em uma esfera ainda mais ampla. “Numa outra escala, se conseguirmos ter uma cidade onde as pessoas possam se deslocar mais a pé, diminui-se consideravelmente o uso do carro”, aponta Kanashiro. “É comprovado que o uso do carro afeta a poluição, melhorando a qualidade do ar na cidade e afetando o impacto, por exemplo, das doenças respiratórias”, acrescenta.
A melhoria da qualidade de vida da sociedade urbana, porém, não depende apenas da decisão individual de caminhar ao invés de usar o carro. Muitas pessoas dependem do transporte para se deslocar, ou sofrem com caminhadas cansativas e perigosas por ser sua única opção. Favarão explica que iniciativas governamentais devem ser tomadas para que haja a mudança no dia a dia dos cidadãos. “Existem evidências que apoiam que o poder público implemente políticas públicas que estimulem a melhoria de calçadas, e isso também vai, conforme o tempo passa, construindo um entendimento coletivo de que a calçada melhora a qualidade de vida das pessoas”, frisa.
A cidade ideal
Segundo a coordenadora do projeto, é complexo pensar em uma cidade ideal no quesito caminhabilidade. “É muito difícil imaginar isso, como se fossem aqueles filmes antigos onde todo mundo é feliz”, brinca. Todavia, as pesquisadoras destacam a importância de um planejamento que viabilize a diminuição da segregação urbana. Favarão explica que “a cidade segregada é muito vinculada à cidade espraiada”.
E fala de outro aspecto: “As periferias onde as pessoas de mais baixas rendas vão sendo segregadas, vão ficando distantes dos centros. Isso tem a ver com a cidade que vai se ramificando e se espalhando geograficamente e ficando cada vez mais ampla. Isso não é necessariamente é positivo”, conta.
Com uma cidade mais compacta e maior acessibilidade do uso de deslocamentos ativos, não só a qualidade de vida da população melhora, mas também se cria um senso de pertencimento às cidades, um sentimento de identificação com todo o espaço urbano. “Estamos batalhando por essas abordagens, desde a sensibilização e a discussão da sua importância”, diz Kanashiro sobre o papel do projeto nesse meio. “Qual é o futuro da nossa cidade? Como nós estamos construindo nossa cidade? Todo esse movimento é o que vai ajudar a dar força para essa discussão”, conclui.
Por: Maria Julia Dalben