Como as esquinas, esse elemento urbano com tanto potencial econômico, cultural e paisagístico, podem ter sido ignoradas por tanto tempo pela produção imobiliária em São Paulo? É possível reverter essa situação?
“Neste empreendimento não há esquinas”, observa um perplexo Raul Juste Lores no vídeo em que analisa o condomínio Grand Reserva Paulista, enorme empreendimento no bairro de Pirituba lançado em 2016, formado por 51 torres residenciais, todo murado, quase sem comércio no térreo e onde devem viver cerca de 50 mil pessoas – que dependerão do carro para praticamente todo tipo de deslocamento.
O empreendimento, infelizmente, está longe de ser uma exceção na cidade. Desde a década de 1970, quando a legislação urbana passou a exigir recuos frontais e laterais nas edificações, o que vimos foi a proliferação de torres isoladas no lote, sem comércio no térreo, quase sempre protegidas por grades e muros – inclusive quando o empreendimento foi construído em uma esquina.
“As esquinas […] representam escolha, uma decisão para as pessoas”. A análise de Mauro Araujo Santos em artigo do Caos Planejado até poderia se referir à metáfora do Djavan na melancólica canção que dá título a este artigo, mas ela trata, literalmente, desse elemento urbano com “potencial de acumular outros elementos, como marcos, domos, torres, esculturas e centros comerciais e de serviços”, que pode, ao invés de barreira, tornar-se conector de outros elementos da cidade.
O paralelo que estabeleci com a música brasileira, contudo, me pareceu oportuno para refletirmos um pouco sobre a importância das esquinas para a vida urbana – e como essa importância se reflete no imaginário das cidades. A música “Sampa” do Caetano, por exemplo, se transformou num hino de São Paulo ao falar “da dura poesia concreta de tuas esquinas” – particularmente no cruzamento da Ipiranga com a Avenida São João.
É a história por trás do “Clube da Esquina” – considerado por muitos um dos melhores álbuns da história da música –, por sua vez, que revela a esquina como uma metáfora das potencialidades decorrentes dos encontros promovidos pelas grandes cidades.
Conforme recorda a matéria de Gabriel de Sá para o Estado de Minas, foi Dona Maricota, mãe dos irmãos Marilton, Márcio e Lô Borges, que apelidou de “Clube da Esquina” aqueles jovens que se encontravam para fazer um som na esquina da Rua Paraisópolis com a Divinópolis, no bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte. A história, porém, vai muito além da esquina e mostra como a dinâmica urbana contribuiu para a formação do grupo e a criação dessa verdadeira obra de arte que é o álbum.
Segundo a matéria, Lô Borges e Beto Guedes teriam se cruzado no centro de BH e se tornado amigos. Tiveram então aulas de harmonia com Toninho Horta, que morava no mesmo prédio do Beto e era irmão de Paulinho Horta, músico da noite e amigo Marilton Borges. Por essas conexões, Toninho teria conhecido Milton Nascimento. O resto é história….
Ainda que um dos atributos mais interessantes e desejáveis de uma grande cidade seja o de proporcionar esses encontros ao acaso, a reunião de amigos para tocar na esquina não me parece um mero acaso. Afinal, as esquinas, como elemento-limite urbano, contam com maior visibilidade e fluxo de pedestres. Em seu artigo, Mauro Araujo Santos nos lembra que “as esquinas […] têm o potencial de se tornarem marcos imagéticos das cidades e locais de concentração de pessoas”.
Não é à toa, portanto, que “os planejadores urbanos de algumas cidades, como Barcelona e Paris, consideram as esquinas como elementos focais, onde os vazios construtivos proporcionados pelo encontro das vias torna-se um espaço deliberado de uso público”.
Mais recentemente, o planejamento de São Paulo compreendeu a importância dos térreos ativos e da fruição pública para a qualidade da vida urbana, introduzindo a partir de 2014 na legislação incentivos para a implementação desses elementos.
Com isso, a produção imobiliária dos últimos anos, particularmente no caso de empreendimentos localizados em esquinas, tem investido em espaços para lojas e fruição pública nos térreos. Há casos, inclusive, em que a incorporação parece ter optado por manter na esquina o estabelecimento comercial que há anos já ocupa aquele espaço e construir apenas em seu entorno.
Contudo, se o Plano Diretor trouxe incentivos à fruição pública e à fachada ativa nos novos empreendimentos imobiliários, o que fazer para incentivar a requalificação das tantas esquinas muradas ou gradeadas, sem vida, sem graça, anteriores ao plano? Não custa lembrar que, ainda que muito se fale do atual processo de verticalização da cidade, esse processo dura décadas, sendo que a maioria dos prédios existentes são anteriores aos anos 2010, grande parte deles com características problemáticas em termos urbanos, como as tais esquinas muradas.
“Tudo o que você podia ser” é o título da maravilhosa canção de abertura do álbum “Clube da Esquina”. É também o que penso ao observar uma das tantas esquinas muradas ou gradeadas da cidade. Atrás das grades e muros, afinal, elas muitas vezes escondem pequenos jardins ou mesmo áreas subutilizadas, muito pouco frequentadas pelos próprios moradores.
Ganharia a cidade se essas áreas fossem convertidas em praças e atrativos pontos comerciais. Neste último caso, não somente a cidade ganharia, como também o próprio condomínio, que poderia ter na loja uma conveniência para seus moradores e uma fonte de receita de aluguel.
Para isso, em primeiro lugar, deveriam ser autorizadas ou facilitadas pela legislação urbana a criação de espaços comerciais nos térreos hoje ocupados por áreas condominiais.
É claro que nem toda esquina apresenta as condições para se tornar uma praça interessante ou um valioso ponto comercial, e isso vai depender de fatores como o fluxo de pessoas, a densidade populacional e o potencial de consumo do entorno, além da disponibilidade de área do próprio condomínio.
Já quando o potencial é identificado, esse tipo de iniciativa, de converter esquinas muradas em áreas públicas ou espaços comerciais, poderia ser até incentivada por descontos temporários em impostos e liberação de potencial construtivo, uma vez que geraria externalidades positivas relacionadas à segurança e valorização da paisagem urbana.
Ao menos nesses casos, no lugar de muros, “Quero ver então a gente / Gente, gente, gente, gente, gente, gente / Gente, gente, gente”, conforme cantado nos versos de “Clube da Esquina n°2” – canção que, na versão original, curiosamente, tinha apenas melodia, tendo recebido a sua letra anos mais tarde. Por que, afinal, também não colocamos um pouco de poesia no lugar das nossas tristes esquinas muradas?
Por: Vitor Meira França
Vitor Meira França é economista pela FEA-USP e mestre em economia pela EESP-FGV.
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